Por Bianca Santana e Selma Dealdina*
Texto originalmente publicado no site Alma Preta em 14/06/2019.
Queremos a garantia de ir e vir sem o risco de tomar 80 tiros. Queremos parlamentares negras atuando em seus mandatos e não executadas com tiros no rosto. Queremos nossa juventude nas escolas, universidades, em bons empregos, não nas cadeias e nos cemitérios. Queremos nosso povo quilombola com o direito à vida e à terra. Queremos segurança. E por isso fomos a Brasília nos últimos 11 e 12 de junho: barrar o projeto genocida de Sergio Moro, falsamente chamado de “anticrime”, e derrubar o decreto de porte de armas de Bolsonaro.
Sessenta entidades, encarnadas em 45 corpos negros e sua diversidade de cores, cabelos e turbantes, entregaram um documento ao Congresso Nacional e à sociedade brasileira. Nele, exigimos uma política nacional pautada pela sociedade civil organizada e fundamentada na inteligência e inovação dos órgãos de segurança pública — com melhoria na eficiência, eficácia e efetividade, não com aumento da força bruta.
Para resolver, de fato, o grave problema de segurança pública do país, é necessário elaborar diagnósticos qualificados e incorporar mais fontes de informação. É preciso ir além das ocorrências criminais para compreender o cenário violento em que vivemos. Quem mais mata? Onde? Por que motivos? E se formos pensar em roubos e assaltos: em que ruas e regiões acontecem? Em que horários e situações? Como é a iluminação pública do local? Perguntas que permitem respostas objetivas — muitas vezes já conhecidas por todo mundo — mas que sejam, de fato, utilizadas para a prevenção de crimes.
A proposta de Sergio Moro não menciona prevenção. Sem base em qualquer estudo ou dado, propõe prender mais e matar mais. Ou seja, o Ministro da Justiça apresenta um projeto que vai na contramão das evidências científicas, das recomendações e acordos internacionais.
Em 2017, morreram 65.602 pessoas no Brasil, 47.510 delas por tiros, um aumento de 6,8% em um ano. O número de pessoas presas também tem crescido enormemente, com quase 800 mil pessoas presas, o que torna o Brasil a terceira maior população carcerária do mundo. E a segurança pública não tem aumentado. Pelo contrário. Prender e matar têm nos deixado mais vulneráveis a criminosos, às facções, às milícias e também à ação de militares que atiram em inocentes, antes de fazer qualquer pergunta.
Na prática, de acordo com a proposta de Moro, qualquer policial que atirar para matar poderia alegar risco iminente ou impacto de forte emoção para não sofrer punição alguma. Legalizar aquilo que Bolsonaro e governadores como Dória e Witzel tem recomendado: atirar para matar. Mesmo que o alvo seja um trabalhador, acompanhando de sua família, a caminho de um chá de bebê. Mesmo que seja uma mulher quilombola, preservando o território recebido de seus ancestrais. No campo, 80% dos crimes praticados contra lideranças quilombolas são cometidos por arma de fogo. Negras e negros são alvos no Brasil. E a proposta de Moro, assim como o decreto de porte de arma de Bolsonaro, vai ampliar nossas mortes nas zonas rurais e urbanas.
Em Brasília, tivemos uma agenda intensa para denunciar a lógica racista que orienta tais propostas. Reuniões com deputadas, deputados, senadoras e senadores de diversos partidos: DEM, PCdoB, PDT, PP, PRB, PSDB, Psol, PT, Rede. É urgente o compromisso de todas as pessoas, parlamentares e partidos em barrar proposições que possam ampliar o genocídio do povo negro.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), se comprometeu a não aprovar o pacote Moro rapidamente, como gostaria o governo, e a realizar amplo debate do projeto no Senado, com participação de negras e negros. Na sala da presidência da casa, acompanhado do deputado Orlando Silva – PcdoB/SP, e dos senadores Paulo Rocha (PT-PA) e Randolfe Rodrigues – REDE (Líder), Alcolumbre se afirmou solidário às reivindicações do movimento negro e se colocou à disposição para articulações futuras.
No segundo dia de nossa atuação em Brasília, acompanhamos a votação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, do projeto de lei proposto por Randolfe, que derruba o decreto de posse de armas de Bolsonaro. Quinze votos, contra nove, e a derrota do decreto foi aprovada na CCJ.
Primeira vitória, das muitas que testemunharemos em nossa coalizão. Estamos articuladas e articulados, em nosso próprio nome, para interromper as execuções e o genocídio de nosso povo, eliminar os padrões de desigualdade, discriminação e violência a que estamos submetidos, e exigir garantia e ampliação de nossos direitos. Logo estaremos de volta à nossa casa, à Casa do Povo, pela vida e por direitos.
*Bianca Santana é jornalista e tem apoiado a incidência de entidades do movimento negro no Congresso pela Uneafro-Brasil
*Selma Dealdina é assistente social e integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ