A toque de caixa, a reforma do sistema eleitoral tramita na Câmara Federal, sem participação popular e pode limitar ainda mais a já restrita democracia representativa no Brasil. A sessão convocada às pressas pela comissão especial sobre a PEC 125/11 da reforma eleitoral foi até o início da madrugada desta terça-feira, dia 04/08, quando foi encerrada sem uma definição. A pressão da sociedade civil e da opinião pública surtiu efeito em parte dos deputados inicialmente aliados da deputada Renata Abreu (Podemos/SP), que propõe a mudança do regime eleitoral para o chamado “distritão”. Com receio de não ter maioria na comissão, há riscos de a proposta seguir direto para o Plenário, onde a correlação de forças é desfavorável aos que se opõem à proposta.
Durante toda a quarta-feira (4) e quinta-feira (5), uma comitiva da Coalizão Negra Por Direitos, articulação nacional que agrega mais de 250 organizações do movimento negro brasileiro, circulou nos corredores das casas legislativas, em Brasília, dialogou com líderes partidários e promoveu um ato aberto à imprensa no Salão Verde da Câmara dos Deputados, marcando o lançamento da campanha “Reforma Racista Não”. A campanha destaca, dentre as propostas de agenda mínima, oposição ao distritão e exigência de que sejam incluídas na pauta da reforma eleitoral a distribuição proporcional de recursos para candidaturas negras, bem como suas reservas, seguindo a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ratificada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Tais decisões foram resultado da consulta pública realizada pela deputada Benedita da Silva (PT/RJ), em 2020.
Após o ato, o grupo se reuniu com o vice-presidente da Câmara dos Deputados, o deputado Marcelo Ramos (PL/AM), que declarou sua oposição à proposta do distritão e seu apoio a alterações que possam vir a garantir maior diversidade e participação popular nos processos eleitorais.
“Neste momento, a vinda da Coalizão Negra para Brasília, com representação de diferentes estados brasileiros, para nós, tem um sentido tão potente quanto foi fazer a Bancada Negra Constituinte, em 1986. São 40 anos de uma batalha para alterar a representação política, com a afirmação da justiça racial e de gênero. A reforma política só será para valer com essa paridade, com garantia de presença e mecanismos institucionais para a população negra”, aponta Vilma Reis, defensora de direitos humanos do Coletivo Mahin da Bahia e integrante da Coalizão Negra Por Direitos.
A comitiva esteve também com a presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann (PT/PR); com o líder da bancada petista, Elvino Bohn Gass (PT/RS); com a liderança do PCdoB, deputado Orlando Silva (PCdoB/SP); com o vice-líder do PSB, deputado Bira do Pindaré (PSB/MA) e com a líder do PSOL, deputada, Talíria Petrone (PSOL/RJ). Os representantes da Coalizão Negra realizaram ainda diálogo com a relatora da proposta da PEC de Reforma Eleitoral, deputada Renata Abreu (PODEMOS/SP), e com o presidente da Comissão que discute o Novo Código Eleitoral, Jhonatan de Jesus (Republicanos/RR).
“A reforma eleitoral defendida pelo chamado ‘centrão’ joga uma pá de cal em qualquer possibilidade de renovação e de eleição de segmentos populares da sociedade aos espaços parlamentares. É inaceitável que os deputados legislem para seus próprios interesses e que o congresso levante um muro ainda maior para impedir o povo negro de chegar ao parlamento. Não vamos aceitar! Vamos lutar até o fim contra essa reforma racista!”, afirma Douglas Belchior, historiador, fundador da Uneafro Brasil e militante da Coalizão Negra.
Da Câmara ao Senado
No Senado Federal, o grupo foi recebido pelos senadores Renan Calheiros (MDB/AL) e Randolfe Rodrigues (REDE/AP), para falar das mudanças no sistema eleitoral e aprofundar o debate sobre a participação da população negra na política. A necessidade de estabelecer políticas de equidade com recorte racial e de gênero para o financiamento de campanhas foi um dos temas abordados.
No diálogo com Renan, foi colocada a importância do Senado em atuar na resistência a quaisquer propostas que restrinjam a participação negra nos processos eleitorais e que possam ser aprovadas pela Câmara, onde os setores ultraconservadores e bolsonaristas são mais fortes.
Destacou-se também a importância de que as vítimas diretas do genocídio cometido por Bolsonaro na condução da pandemia tenham espaço nos relatos colhidos pela CPI da Covid-19, da qual Renan Calheiros é relator.
Diálogos no STF sobre uma agenda eleitoral que enfrente o racismo
A urgência de estabelecer uma agenda eleitoral que combata o racismo, visando a ampliação de direitos da população negra no país, foi o tema da conversa da comitiva da Coalizão Negra com o presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, e com o ministro do STF, Gilmar Mendes, nesta terça-feira, 03/08. Foi destacada a importância da decisão das duas instâncias em garantir a distribuição proporcional de recursos para candidaturas negras. Os ministros defendem que as reformas em andamento promovam a ampliação da participação política e não a restrição da renovação e do acesso dos setores populares da sociedade aos espaços parlamentares.
Para Sheila de Carvalho, advogada da Coalizão Negra por Direitos, “o STF e o TSE tiveram um papel decisivo nas eleições de 2020 para aumentar a representatividade de negros e negras nas eleições municipais. Em um momento que resistimos à barbárie das mudanças anunciadas na reforma eleitoral, é muito importante que os tribunais reconheçam que essa representatividade é fundamental para o pleno exercício da democracia e da cidadania de brasileiros e brasileiras”.
A fome também foi tema da conversa com os senadores. Mais de 116 milhões de brasileiros e brasileiras não têm acesso pleno e permanente a alimentos. Dessas pessoas, 19 milhões estão em situação de insegurança alimentar grave, isto é, passando fome. Os dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, que foi realizado em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, entre 5 e 24 de dezembro de 2020.
A Coalizão Negra é a organizadora da campanha de arrecadação de fundos para o combate à fome, à miséria e à violência na pandemia chamada “Tem Gente com Fome” e, por isso, traz a temática ao centro do debate. Inspirada no poema de Solano Trindade, a campanha foi lançada em março de 2021 e mapeou 222.985 famílias em situação de vulnerabilidade, precisando de comida e mantimentos básicos. Até o momento, foram arrecadados R$ 16 milhões que se transformaram em cestas básicas, alimentos orgânicos e kits de higiene e limpeza para milhares de pessoas. Mas é preciso atender muito mais gente, trabalho de grande proporção que só pode ser realizado com a máquina do Estado.
Por isso, uma amicus curiae, permissão para que uma organização ou entidade seja fonte de informação para uma decisão judicial, sobre os riscos da fome no país foi discutida com os ministros.