Carta Aberta da Coalizão Negra Por Direitos em Defesa da Permanência do ProjetoMeninos e Meninas de Rua

Nós, movimentos, organizações, entidades, grupos, coletivos e indivíduos do movimento negro brasileiro, reafirmamos nosso legado de resistência, luta, produção de saberes e de vida. Historicamente, seguimos enfrentando o racismo, que estrutura esta sociedade e produz desigualdades que atingem principalmente nossas existências. Durante os quase quatrocentos anos de escravização e desde o início da República, somos alvo de violações de direitos, do racismo anti-negro, da discriminação racial, da violência e do genocídio. Mesmo assim, temos construído, com nossas trajetórias individuais e coletivas, a riqueza deste país.

Esta Coalizão se reúne para fazer incidência política em nosso próprio nome, a partir dos valores da colaboração, ancestralidade, circularidade, partilha do axé (força de vida herdada e transmitida), oralidade, transparência, autocuidado, solidariedade, coletivismo, memória, reconhecimento e respeito às diferenças, horizontalidade e amor. Em defesa da vida, do bem viver e de direitos arduamente conquistados, irrenunciáveis e inegociáveis, seguiremos honrando nossas e nossos ancestrais, unificando em luta toda a população afro-diaspórica, por um futuro livre de racismo e de todas as opressões.

Ainda, é preciso afirmar que a Coalizão Negra Por Direitos, desde a sua fundação, tem participado publicamente das discussões nodais, as quais o Brasil tem atravessado, principalmente no que tange à importância da reconstrução do país. Consideramos que todos nós brasileiros fomos alvos das práticas truculentas do governo federal, sob o tacão do bolsonarismo que, para além de desmantelar as políticas sociais consolidadas ao longo dos últimos governos, também propiciou o aumento da violência, da desigualdade e das práticas de discriminação racial no Brasil.

Mais uma vez, como forma de combate e denúncia a um ato de racismo institucional, a Coalizão Negra Por Direitos vem, por meio desta “Carta Aberta”, manifestar apoio ao Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo do Campo (PMMR). Desde 2018, o PMMR enfrenta uma disputa judicial em busca da permanência nas mesmas instalações em que hoje se encontra, na Rua Jurubatuba, n° 1610. A entidade conquistou em 1989 a primeira permissão de uso sobre o local. A permissão foi retirada pela Prefeitura arbitrariamente sob a justificativa de “perda do interesse social”. Em 2021, com o apoio de movimentos sociais e de entidade nacionais e internacionais de direitos humanos, em defesa da relevância do projeto e de seu trabalho com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e suas famílias, foi possível suspender o despejo.

Agora, no dia 26 de julho de 2023, será julgada a medida de suspensão pela 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo. Pretendemos, por meio desta Carta, endossar os pedidos para que o Prefeito de São Bernardo do Campo retire o seu pedido de despejo desta renomada organização e para que outras instâncias governamentais e de proteção aos direitos de crianças e adolescentes se mobilizem pela permanência do projeto.

Sabemos que o executivo do município de São Bernardo acaba de aprovar a Lei municipal n° 7.216, de 29 de junho de 2023, que qualifica a prática de racismo enquanto crime, sancionável por meio de multa de até R$ 15 mil reais. Além disso, a Coalizão Negra Por Direitos tem conhecimento de que a prefeitura de São Bernardo do Campo aderiu ao Projeto Cidades Antirracistas, junto ao Ministério Público de São Paulo e, por fim, anunciou a construção do Conselho Municipal da Igualdade no município.

Neste caso, a Coalizão Negra Por Direitos vem afirmar que a suspensão de despejo do Projeto Meninos de Rua, para além de ser uma demonstração do Prefeito Orlando Morando contra o racismo no município de São Bernardo, expressaria o seu reconhecimento ao Projeto Meninos e Meninas de Rua pela sua importante atuação em São Bernardo do Campo, considerando que desde a sua fundação, em 1983, esta entidade foi protagonista em denunciar o extermínio de crianças e adolescentes neste município, no Brasil e no exterior, além de ser uma das responsáveis na elaboração e consolidação do Estatuto da Criança e do Adolescente, sancionado em 1990.

Na mesma direção, é preciso sublinhar que a suspensão do despejo do Projeto Meninos e Meninas de Rua seria o reconhecimento do Prefeito Orlando Morando pela histórica contribuição do PMMR no município de São Bernardo na idealização e elaboração de políticas públicas de atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de rua e seus familiares, tais como a criação do Fórum Estadual dos Direitos da Criança e Adolescentes/SP e do Fórum Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente/SBC, bem como a fundação do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Grande ABC (CEDECA ABC), que colaborou com o reordenamento institucional da rede de atendimento socioassistencial a essa população em toda a região do ABC, ao longo dos anos 90.

A Coalização Negra Por Direitos, por meio desta “Carta Aberta”, reitera que o Prefeito Orlando orando, que parece pretender colocar a cidade de São Bernardo do Campo enquanto uma “Cidade Antirracista”, dará um passo à frente ao declinar o pedido de despejo do Projeto Meninos e Meninas de Rua, pois, como aqui demonstrado e como internacionalmente reconhecido – a exemplo do Prêmio Criança, Prioridade Nacional 1990, oferecido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância da UNICEF às entidades do Fórum de Entidades Não Governamentais de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente e do Prêmio Direitos Humanos 1991, da Associação Pró-Diretos Humanos do Equador -, a história desta organização aponta para uma atuação, desde sua criação, em prol da superação do racismo e de qualquer forma de discriminação e opressão, ao privilegiar o atendimento de crianças e adolescentes e seus familiares na perspectiva da defesa de direitos e da inserção das famílias nas políticas públicas ofertadas no município de São Bernardo do Campo.

Não é exagero registrar que o município de São Bernardo do Campo, uma vez que foi uma das primeiras cidades a aderir ao Programa Cidade Antirracista, estará demonstrando na prática o seu comprometimento com o combate ao racismo ao consentir com a permanência do PMMR, considerando que o projeto, mesmo com dificuldades inúmeras, tem realizado suas atividades no espaço, como: a elaboração de cursos e oficinas para jovens em vulnerabilidade, pautadas na ferramenta da educação social; ações de promoção de direitos, como a arrecadação e distribuição de cestas básicas e a orientação socioassistencial a respeito das políticas públicas disponíveis para cada público; e ações participativas da sociedade civil, com o envolvimento direto das crianças, adolescentes e seus familiares, como a organização do Bloco EURECA (Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Adolescente), que, por meio da ação lúdico-político-pedagógica, leva crianças e adolescentes para desfilarem nas ruas durante o carnaval e compartilharem suas demandas
com a esfera pública.

Ainda, a revogação do pedido de despejo do Projeto Meninos e Meninas de Rua reitera o compromisso do atual executivo de São Bernardo do Campo por reconhecer que o PMMR
tem em sua essência a luta racial, tanto porque a maioria da população atendida pelo Projeto é composta por pessoas negras, quanto pelo papel histórico desempenhado pelo PMMR em SBC, pois foi esta instituição que abriu as portas e fortaleceu a Posse Haussa, o Fórum de Hip Hop, o Sarau do Fórum e mais recentemente a Batalha da Matrix, iniciativas que são fundamentais para que a cidade de São Bernardo do Campo venha a enfrentar as práticas de racismo neste município.


Por fim, a Coalizão Negra Por Direitos salienta que a decisão do Prefeito Orlando Morando em suspender o despejo do Projeto Meninos e Meninas de Rua seria não apenas uma manifestação de seu compromisso contra o racismo no município de São Bernardo do Campo, mas também uma atitude que expressa alguns dos princípios da Coalizão Negra Por Direitos, a saber:

i) O combate à discriminação racial, ao racismo, à dominação patriarcal, à lesbofobia, à transfobia e ao genocídio da população negra;
ii) O enfrentamento das assimetrias e de desigualdades raciais, bem como a busca pela efetivação da justiça social redistributiva e da justiça racial restaurativa;
iii) O enfrentamento ao modo intransigente do feminicídio, à violência doméstica, ao machismo, ao sexismo e à exploração e violência sexual infantil;
iv) A atuação em prol do fortalecimento dos coletivos, movimentos e organizações compostas e protagonizadas pela juventude negra e da promoção do diálogo intergeracional;
v) A promoção e o fortalecimento da identidade racial de negras e negros nos bairros, periferias, comunidades, favelas, escolas, universidades e presídios.

Além dos princípios supracitados, a suspensão definitiva do despejo do Projeto Meninos e Meninas de Rua, considerará algumas das principais exigências da Coalizão Negra Por Direitos, as quais destacamos:

a) A erradicação da pobreza, enfrentamento às políticas neoliberais e ao desmonte do Estado de Direitos, bem como o enfrentamento das desigualdades étnico-raciais e a distribuição equitativa de recursos públicos;
b) Garantia do direito e preservação da infância negra, que permita que meninas negras e meninos negros tenham o direito de ser crianças; combate a todo e qualquer processo de uso de estereótipos, criminalização, sexualização e exploração do trabalho infantil; Enfrentamento às tentativas de redução da maioridade penal; Defesa contundente do Estatuto dos Direitos da Criança e do Adolescente;
c) Erradicação do racismo institucional em todas as instâncias do sistema de justiça;
d) Defesa da livre manifestação e atuação dos movimentos sociais e a proteção de defensoras e defensores de direitos humanos.

Diante do exposto, a Coalizão Negra Por Direitos vem pedir a suspensão do despejo do Projeto Meninos e Meninas de Rua, pois acreditamos que a iniciativa do executivo ao promover o despejo do PMMR vai na contramão das medidas que o atual prefeito Orlando Morando tem encampado nos últimos dias. Neste caso, a Coalizão Negra Por Direitos, para além de exigir a suspensão do despejo do Projeto Meninos e Meninas de Rua, propõe que haja um aberto diálogo entre o poder executivo de São Bernardo do Campo, o Ministério dos Direitos Humanos, o Ministério da Igualdade Racial, Ministério de Relações Institucionais, a Secretaria-Geral da Presidência da República, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e a Fundação Cultural Palmares, para que, de fato, o Projeto Meninos e Meninas de Rua possa permanecer em seu espaço, local este que,
conforme afirmamos e brevemente demonstramos acima, tem cumprido um papel histórico e importante para que São Bernardo do Campo venha a ser uma cidade verdadeiramente antirracista, que promova e respeita os direitos humanos.

Coalizão Negra por Direitos