Carta pública de entidades sobre crianças desparecidas na Baixada Fluminense

No último dia 27/12, Lucas Matheus, de 8 anos, Alexandre da Silva, de 10, e Fernando Henrique, de 11, saíram para brincar no campo de futebol ao lado do condomínio onde moram, no Castelar, favela de Belford Roxo. Eles não retornaram para casa às 14h, como era de costume. As famílias, então, iniciaram uma busca incessante e dolorosa por diversos bairros, hospitais, IMLs e delegacias, sem obter sucesso na descoberta do paradeiro dos meninos. A investigação do caso está alocada na Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF), especificamente com o setor de Descoberta de Paradeiros, mas até hoje as autoridades não conseguiram dar uma resposta efetiva sobre o caso, passado 1 mês de angústia, dor e sofrimento para as famílias de Lucas, Alexandre e Fernando que esperam uma resposta sobre o paradeiro de seus filhos. 

Os casos de desaparecimento de crianças e adolescentes no estado do Rio de Janeiro não são um fato “novo”, segundo dados da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), que acompanha o caso dos meninos de Bel, só no Rio o número de crianças ainda desaparecidas é de 579, sendo 20.03% destas, crianças negras. Nacionalmente, o cenário não é diferente, dados do núcleo de direitos humanos do MP/AL, apontam que 33,63% das vítimas não localizadas em todo o Brasil são crianças e adolescentes, nos últimos três anos, os números de desaparecidos no Brasil somam 82 mil pessoas. 

Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, aproximadamente 60% do total de pessoas desaparecidas no estado ocorrem na Baixada Fluminense. Ressalta-se que a metodologia dos dados oficiais não engloba os casos de desaparecimentos forçados dificultando ainda mais a possibilidade de quantificar o real número de pessoas vítimas da violência urbana que são executadas pelo Estado. 

Diante do preocupante e persistente quadro histórico de casos de desaparecimento, atravessado pelas desigualdades racial, territorial e social perguntamos: onde estão as políticas públicas sociais para assegurar o direito à vida e integridade física de crianças e adolescentes garantida pelo artigo 227 da Constituição, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/1990), pela lei 13.812/2019 e dever do Estado em todas as instâncias: municipal, estadual e federal? 

Crianças e adolescentes devem ter prioridade absoluta e preferência na formulação e implementação de políticas públicas, conforme o estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 4º, parágrafo único), e também por força do princípio constitucional da prioridade absoluta da criança e da/do adolescente. Exigimos respostas e proteção às nossas crianças e adolescentes negras e negros! 

Belford Roxo, região da Baixada Fluminense, cidade de Lucas, Alexandre e Fernando é um território negro! Mais de 65% de sua população é composta por pretos e pardos, e mais de 10% dessas pessoas vivem em territórios de favela e periferia. Este território vem durante anos sofrendo com o projeto de genocídio da população negra liderado pelo Estado brasileiro e seus governantes, marcada pelas desigualdades, pela ausência de políticas públicas, pela violência letal e policial, pela atuação de grupos de extermínio, grupos armados e milicianos, esse município preto é o reflexo de um projeto e estrutura histórica de marginalização e extermínio da população negra.

No dia 11 de janeiro de 2021, ocorreu em Belford Roxo no Complexo do Roseiral e adjacências uma operação policial com arsenal de guerra civil, foi a primeira vez que a região teve contato com algo deste porte. Uma megaoperação policial que contava com vários blindados, caveirões, uma grande quantidade de policiais e a participação de diversos grupos táticos, como o BOPE, BAC e Choque. 

Todo esse arsenal utilizado, segundo a própria polícia, foi para implantar o 1º Destacamento Policial do 39° BPM que ficará sediado no bairro do Roseiral, conhecido como Complexo do Roseiral. Serão 125 policiais atuando na região, aumentando o efetivo do 39º BPM de 379 para 504 agentes. 

Desde o dia 11/01 as comunidades vêm sofrendo cotidianamente com as operações policiais para a implementação do novo destacamento e os seus brutais impactos na rotina da população. Operações policiais que estão sendo legitimadas a partir do discurso de levar a paz e a elucidação de casos de desaparecimentos. Entretanto, a realidade no cotidiano das comunidades afetadas evidencia uma rotina intensa de conflitos armados nas ruas da região. Os moradores e as moradoras vêm relatando a convivência forçada com a violência policial diária, conflitos envolvendo facções e milícias, bem como, todos os dias casos de execuções, torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados cometidos pela polícia.

Já são 13 pessoas assassinadas durante a implementação do destacamento da PM, segundo informações sistematizadas pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial. Há informações de que os corpos estão sendo retirados em carroças pelos próprios moradores. Uma semana de terror em Belford Roxo e que não tem perspectiva de acabar, haja vista, que o confrontos entre facções de tráficos e milícias para manter o domínio dos territórios já iniciaram e a população fica refém desse fogo cruzado. 

Vale salientar que durante todo o mês de Dezembro de 2019, foram 42 operações policiais na Baixada Fluminense. Sendo, 22 operações policiais realizadas exclusivamente pelo 39ºBPM! Nesses 7 meses de execução da liminar que suspendem operações policiais, Belford Roxo foi o município mais afetado pela ocorrência de operações policiais. 

O contexto agrava-se também com a pandemia de Covid-19 que impactou de forma desigual a vida das pessoas negras, em especial das mulheres negras, e de suas filhas e filhos – famílias negras! O cenário é de redução de renda, desemprego, insegurança alimentar e financeira, ausência de saneamento básico e de água potável, exposição à Covid-19 para aquelas que precisam enfrentar transportes públicos lotados na busca do sustento de suas famílias, precariedade de acesso ao auxílio emergencial e ausência de renda básica. Onde não há tranquilidade financeira e de saúde para as famílias negras e pobres, não há Bem Viver. Com a escalada das injustiças e desigualdades, há cada vez mais risco para as crianças – nossas crianças! Por isso, as entidades negras, bem como outras entidades que também lutam por justiça racial, equidade de gênero e igualdade social, e assinam esta carta vem através desta DEMANDAR ao governador em exercício do Estado do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, em especial ao comando das secretarias de Polícia, de Assistência Social e Direitos Humanos, ao Presidente do Tribunal de Justiça e ao Procurador Geral do Ministério Público:

  • celeridade nas investigações sobre o desaparecimento de Lucas, Alexandre e Fernando,
    além de suporte jurídico, psíquico e financeiro às famílias dos meninos de Belford Roxo que
    a 1 mês buscam respostas sobre o caso;
  • divulgação e transparência dos dados relacionados às pessoas desaparecidas no estado
    com recorte por municípios, regiões, idade, gênero, raça, com indicativo dos casos apurados,
    sem resolução ou arquivados;
  • resposta pública e em página institucional oficial que traga as políticas públicas sociais
    implementadas e em execução para redução do risco social, redução do grave quadro de
    desaparecimento de pessoas (com ênfase em desaparecimento de crianças e adolescentes)
    e promoção de justiça social em todo o estado, e em especial nos municípios da Baixada
    Fluminense.

Assinam esta carta:
Articuladas – Mulheres no Enfrentamento à Violência Institucional no Rio de Janeiro.
Associação de Mães e Amigos da Criança e Adolescente em Risco – AMAR Nacional
Associação de Mães e Familiares de Vítimas da Violência do Espírito Santo
Associação de Mulheres Negras Aqualtune
Associação dos CAPSI do Município do Rio de Janeiro – ACAMURJ
CDC Se Essa Rua Fosse Minha
Coalizão Negra por Direitos
Coletivo de Mães e Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade de Rondônia
Coletivo Favela no Feminino
Coletivo Minas da Baixada
Coletivo Negro Cláudia Ferreira da Silva/UFRJ
CRIOLA
Federação das Associações das Favelas do Rio de Janeiro – FAFERJ
Fórum Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do RJ
Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro
Fórum de Favelas e Periferias
Fórum Social de Manguinhos
Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro
Frente Estadual pela Saúde Mental e pela Reforma Psiquiátrica
Frente Estamira de CAPS – Resistência e Invenção
GENI/UFF
Grupo de Mulheres Bordadeiras da Coroa
Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial
Instituto Marielle Franco
ISER Assessoria
Justiça Global
Laboratório de Políticas Públicas de São João do Meriti
Mães de Manguinhos
Mães do Xingu
Marcha das Mulheres Negras de São Paulo
MONULA – MOVIMENTO NACIONAL DOS USUÁRIOS DA LUTA ANTIMANICOMIAL
Movimento Candelária Nunca Mais
Movimenta Caxias
Movimento FAVELAÇÃO
Movimento Favelas Na Luta
Movimento Moleque
Movimento Negro Unificado – MNU
Movimento Parem de Nos Matar
NAJUP Luiza Mahin/UFRJ
Núcleo de Mães Vítimas da Violência
Portal das Favelas
Programa Social Sim! Eu Sou do Meio.
Psicanalistas Unidos pela Democracia
Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência
Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado
Rede Rio Criança