Com participação da Conaq, governo tem prazo de 30 dias para elaborar um plano de enfrentamento da pandemia nas comunidades. Ministros também suspenderam despejos e remoções.
O Estado brasileiro é obrigado a desenvolver, no prazo de 30 dias, um Plano Nacional de Enfrentamento da pandemia de Covid -19 voltado para proteção das comunidades quilombolas. É o que determinam os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742/2020, encerrado na noite desta terça-feira (23), em plenário virtual.
Protocolada em setembro de 2020 pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e pelo PSB, PSOL, PCdoB, REDE e PT, a ação destacava a omissão do governo brasileiro em efetivar medidas de enfrentamento dirigidas para quilombos à grave crise epidemiológica já instalada no país.
Com baixíssimo acesso a rede pública de água, esgoto e acesso ao sistema público de saúde, entre outros, as comunidades vivem uma situação de extrema vulnerabilidade social, ainda mais agravada no contexto da pandemia. A manifestação mais intensa e maior letalidade da doença entre a população negra também é outro fator, apontam as organizações, que implica na urgência de ações específicas para enfrentamento da pandemia. Ainda assim, a população negra representa apenas 19% da população vacinada no país até o momento, ainda que constitua 56% da população brasileira, de acordo com o IBGE , uma evidência de que a desproporcionalidade dos impactos da pandemia mais intensos entre a população negra – fruto da desigualdade socioeconômica e ausência do estado – também tem se manifestado em menor porcentagem de negros vacinados.
“Essa vitória nos coloca parâmetros – de colocar o que já tínhamos cobrado do governo – de um plano que não somente evite o avanço da pandemia nos territórios quilombolas, mas que garanta a segurança alimentar, vacinas, testes, imunização em massa. O STF dá um passo importante ao reconhecer o direito de quem é de direito. As comunidades são um grupo numeroso e a população negra é que mais morre pela covid por não conseguir acesso a saúde, essa decisão nos faz avançar na equidade”, aponta o integrante da coordenação da Conaq, Biko Rodrigues.
Para elaboração do Plano o governo terá o prazo de 72 horas para constituição de um grupo de trabalho interdisciplinar. Além disso, dá ao governo 72 horas para incluir informações de raça e etnia entre os registros de casos da Covid-19 e para a retomada de plataformas públicas de acesso à informação, como os sites que antes traziam as informações do Programa Brasil Quilombola e o monitoramento feito pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) com informações sobre a população quilombola e acesso à políticas públicas.
“Foi uma vitória inesquecível. Das vitórias que a gente já teve, essa é histórica, porque é a primeira vez que a gente busca o STF para efetivação de um direito que já é garantido e não estava sendo efetivado. É uma vitória maravilhosa e emocionante, depois de tantas lutas, dificuldades e enfrentamentos desde o início da pandemia”,destaca a assessora jurídica da Conaq e Terra de Direitos, Vercilene Dias, em referência ao ineditismo da incidência na Corte pela Conaq.
O julgamento da ação também carrega outros dois fatos históricos: ao admitir a legitimidade da Conaq em propor a ação, o STF reconheceu a Coordenação Quilombola como uma entidade de classe de âmbito nacional e advogadas quilombolas fizeram as sustentações orais. Quilombola do território Kalunga (GO) Vercilene atuou como representante da Conaq. Já quilombola do Quilombo da Rasa, da cidade de Armação dos Búzios (RJ), a assessora jurídica Gabriele Gonçalves também participou do julgamento virtual, representando a Terra de Direitos, organização que atuou como amicus curiae do julgamento.
“Esta vitória, além de reconhecer o racismo estrutural, também recupera os direitos constitucionais conferidos desde 1988 [estabelecidos na Constituição Federal]. A normalização dos efeitos da pandemia no cenário das comunidades quilombolas, que já agonizavam com a ausência das condições básicas para sua subsistência, só demonstrava uma perspectiva de violência racial. Enquanto esta violência estiver estabelecida não estaremos diante de um estado democrático”, enfatiza Gabriele.
Votos
O resultado do julgamento da ação representou uma maioria de votos que divergiram em partes do relator da ação, Ministro Marco Aurélio. Em seu voto, o ministro reconheceu a omissão do Governo Federal na proteção aos quilombolas e determinou a elaboração de um Plano Nacional de Enfrentamento da pandemia entre os quilombos, mas deixou de reconhecer pontos importantes da ação movida pela Conaq. O relator não garantiu a suspensão de medidas de reintegração de posse em conflitos fundiários envolvendo quilombos, mesmo que apenas 7% das comunidades quilombolas das 5.972 localidades quilombolas são tituladas (Dados IBGE) tenham o título de seus territórios.
Ao votar, o ministro Edson Fachin acompanhou o relator na criação do plano, mas divergiu em parte no voto e reconheceu o pedido feito pela Conaq na ADPF para suspensão dos despejos. “A manutenção da tramitação de processos, com o risco de determinações de reintegrações de posse, agravam a situação das comunidades quilombolas, que podem se ver, repentinamente, aglomerados, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus”, apontou Fachin.
O voto de Fachin foi acompanhado pelos ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes – que havia votado com o relator, mas depois mudou seu voto.
Apenas o ministro Nunes Marques seguiu Marco Aurélio. Ao votar, o ministro não reconheceu a legitimidade da Conaq em propor a ação e questionou o mérito da ADPF ao alegar que já estavam previstas outras medidas voltadas aos quilombolas, como a Lei n. 14.021/20, que apresenta medidas de proteção aos indígenas e contempla a população quilombola em alguns pontos. O descumprimento da lei e a falta de ações do Executivo Federal, no entanto, foram denunciados pela Conaq na ADPF. Além disso, Nunes Marques minimizou a vulnerabilidade em que está inserida a população quilombola e a população negra ao declarar que “o vírus não reconhece distinções étnicas, econômicas ou sociais”. Nunes foi o ministro indicado por Jair Bolsonaro (sem partido). Alinhado ao voto do presidente que já manifestou oposição às políticas quilombolas e declarou que não garantirá “nenhum centímetro de terras para indígenas e quilombolas”, Nunes evidenciou em seu voto proferido a ausência de compromisso em proteger as vidas quilombolas diante da mais intensa crise epidemiológica vivida pelo Brasil.
Para Maíra Moreira, assessora jurídica da Terra de Direitos, o voto divergente de Edson Fachin acompanhado por outros oito ministros, marcam uma vitória para todas as comunidades quilombolas do Brasil, que são vítimas de conflitos envolvendo a posse de suas terras. “Essa vitória representa um grande avanço na compreensão dos conflitos possessórios e de como esses fragilizam e vulnerabilizam a população quilombola em período de pandemia. É um julgamento que cria também um entendimento sobre a situação de vulnerabilidade dessas comunidades em relação aos processos de titulação de seus territórios”, aponta.
“A suspensão dos despejos é muito importante. A pandemia continuou assim, como despejo e obras nos territórios não pararam. Nós sempre cobramos o estado, o MPF que não se fizesse o contrário do que os organismos internacionais e secretarias de saúde determinam – que é ficar em casa. É inaceitável que as pessoas possam ser desalojadas de suas casas, ainda mais durante uma pandemia”, destaca Biko. A permanência em casa e o isolamento social têm sido, reiteradamente, apontadas pela Organização Mundial da Saúde, institutos de pesquisa e secretarias da pasta como medidas mais eficazes para evitar a disseminação do vírus.
Reportagem : Terra de Direitos