Porque estaremos nas ruas no 19J pelo Fora Bolsonaro

Vivemos num sistema de dominação racial branca que se viabiliza da maneira mais cruel possível por meio da distribuição desigual dos recursos materiais e simbólicos para a garantia da vida humana. Isso resulta no não reconhecimento dos direitos fundamentais da população negra por parte do Estado brasileiro.

Com a pandemia da Covid-19, o processo de desvalorização da vida da população negra se intensificou. Esse foi o grupo populacional mais atingido pelo vírus e, estrategicamente, reafirmando a manutenção do poder branco estatal, houve a relutância do Estado em reconhecer a necessidade em rever o Plano Nacional de Vacinação, levando em conta a necessidade de priorizar os grupos quilombolas e indígenas no atendimento à vacinação, bem como considerar as variáveis de território, acesso aos serviços de saúde e raça/cor para distribuição das vacinas. Não houve política de incentivo ao uso de EPIs nas periferias e para as mais de 680 mil pessoas encarceradas no país. Esses foram impedidos de receber visitas, o principal meio de fiscalização dos direitos mínimos de pessoas nessas condições.

Com o padrão da política econômica adotada a partir do governo em 2017, houve um rápido empobrecimento da população brasileira, que fez com que o Brasil retornasse ao mapa da fome, sem políticas de geração de emprego e renda, sem políticas de acesso ao auxílio emergencial compatível com as necessidades da população durante todo o período da pandemia, gerou mais de 19 milhões de brasileiras e brasileiros que já não conseguem tomar três refeições diárias e sofrem com a fome. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em seu levantamento mais recente, 29,8% dos domicílios chefiados por pessoas negras sofrem com insegurança alimentar, enquanto 14,4% dos lares chefiados por pessoas brancas padecem pelo mesmo problema. Ademais, a política de morte relacionada à Segurança Pública se acentuou violentamente durante o período da pandemia. Nem nesse momento a brutalidade contra a população negra cessa. Não há dúvidas de que as pessoas negras, moradoras de favelas, morros e periferias são compreendidas como estoques de vidas disponíveis para o Estado matar quando assim desejar, e isso se descortinou, mais uma vez, na manhã do dia 7 de maio. Foi quando a sociedade brasileira acordou com a notícia de que a polícia carioca invadiu a favela do Jacarezinho e praticou uma série de violações contra as pessoas moradoras do lugar, inclusive crianças, e assassinou brutalmente 29 pessoas, sob a justificativa de impedir que crianças fossem aliciadas para o tráfico de drogas. A ação ilegal e desastrosa contou com o aval do governador Claúdio Castro e contrariou a decisão do Supremo Tribunal Federal, que impedia a ocupação de favelas durante o período da pandemia da Covid-19. No dia seguinte, a trajetória das ilegalidades seguiu  o seu fluxo comum na comunidade e as redes da ideologia bolsonarista comemoravam o feito das vidas negras mortas pelo terror de Estado.

Neste último mês, os assassinatos de Kathlen Romeu, Gibinha, Maria Célia Santana e Vivian Soares chamaram a atenção da opinião pública. Pessoas negras, no cotidiano ordinário de suas vidas, assassinadas pelas forças policiais do Estado genocida brasileiro. Essas mortes são apenas uma pequeníssima amostra do significado objetivo do que há mais de 40 anos o movimento negro vem denunciando.

A Coalizão Negra por Direitos não teve outra alternativa diante da ameaça da Covid-19 e se manteve mobilizada desde o início da crise sanitária. Em abril de 2020, lançou o manifesto “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”. No mês seguinte, já em meio à pandemia, os assassinatos de George Floyd, asfixiado por um policial nos EUA e, no Brasil, do garoto João Pedro, morto a tiros por policiais, enquanto estava dentro de casa, forçaram a Coalizão a montar brigadas de segurança sanitária e ocupar as ruas em protestos pelas mortes da população negra.

Em março de 2021, para enfrentar a fome, a Coalizão Negra por Direitos lançou a campanha “Tem Gente com Fome”, que objetiva atingir 226 mil famílias em todo o Brasil, em centros urbanos, norte, nordeste, população indígena, comunidades quilombolas e ribeirinhas. Uma campanha que se preocupa em distribuir alimentos de qualidade e orgânicos produzidos pela agricultura familiar, além de produtos de limpeza, produtos de higiene geral, pessoal, incluindo absorventes higiênicos.

Como reação ao massacre na favela do Jacarezinho, a Coalizão, mais uma vez, montou brigadas sanitárias e realizou mobilizações e atividades de rua. Nos dias 6 e 7 de maio, ocorreram manifestações de rua nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente, o que culminou na realização do “13 de Maio de Lutas”, atos de rua em todo o Brasil, cujo eixo de reivindicação era “NEM BALA, NEM FOME, NEM COVID-19”. As manifestações, cumprindo todo o protocolo sanitário, tiveram grande participação popular. Em uma noite de quinta-feira fria aqui em São Paulo, por exemplo, o protesto reuniu mais de 15 mil pessoas.

De maneira que consideramos que tanto as entidades e organizações individualmente, quanto a Coalizão Negra por Direitos têm trabalhado durante o período de pandemia para o conjunto da sociedade brasileira. Isso se deve em virtude do fato de que, ao se calcular os riscos entre “ficar em casa” e fazermos mobilizações exclusivamente virtuais, e o risco de vida iminente da população negra  em virtude da Covid-19, das forças policiais ou de fome, estaríamos menos vulneráveis lutando por nossas vidas e indo para as ruas no ano de 2020 e 2021. Neste momento, presenciamos a possibilidade da construção de uma unidade política estratégica que se apresenta com a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo, a qual se mostra muito potente e profícua para que possamos, juntos, enfrentar os tempos nefastos e fortalecer a vida do nosso povo. Entretanto, essa construção só perdurará se houver a compreensão e o compromisso firmado em torno dos significados políticos possíveis de serem pactuados. Isso significa, portanto, que essa unidade estratégica, ainda que tenha como objetivo que Jair Messias Bolsonaro prossiga na presidência e com seus atos de terror de Estado, deve procurar ampliar seus horizontes no sentido de assumir o enfrentamento ao racismo com a centralidade que lhe é devida entre suas pautas e práticas e, sirva assim, como uma experiência pedagógica que se alicerça em um contrapacto civilizatório proposto pelo Bem Viver à sociedade brasileira.

Se faz necessário, sobretudo, por parte das organizações e entidades tradicionais, cujas lideranças são brancas, que se coloquem dispostas a não ruptura do reconhecimento da legitimidade, tanto das lideranças negras que participam das reuniões e contribuem para a construção dos atos, quanto das motivações que fizeram com que centenas de pessoas negras estivessem  nas ruas, nos becos, vielas e favelas durante todo o período de pandemia fazendo política. É importante ressaltar que quando uma pessoa negra é impedida de falar, suas contribuições são desconsideradas no processo de construção das atividades e, em particular, são desconsideradas também as pautas interessadas na dissolução do sistema de dominação racial que é reafirmada a todo momento pela ideologia bolsonarista. Isso não só fragiliza a unidade das Frentes Brasil Popular, Povo Sem Medo e Coalizão Negra por Direitos, como também nos distancia das disposições iniciais desse encontro.

Contamos com a união das forças populares de esquerda e acreditamos nas possibilidades de reinvenção dos tempos, dos espaços e das articulações, na construção de um Brasil do Bem Viver, o qual só é possível ser construído por meio de uma aliança nacional do campo protagonizado por mulheres negras, LGBTQIA+ e indígenas. Esse caminho já está em curso e luta para que a vida do nosso povo não seja mais interrompida nem por bala, nem por fome, nem por Covid-19, muito menos por atropelos assustados em reuniões coloniais. 

Sendo assim, a Coalizão Negra por Direitos convoca todas as organizações negras e todas as organizações que tenham compromisso com a luta contra o capitalismo racial e que saibam do papel do enfrentamento ao racismo na centralidade da luta por dias melhores, que tenham compromisso com a população negra e o povo brasileiro, todos devidamente cumprindo o protocolo sanitário, fazendo o uso da máscara N95 ou PFF2, a estarem nas ruas do Brasil no próximo sábado, pelo 19J, pelo “Fora, Bolsonaro”.