Nota da Coalizão Negra por Direitos sobre o Termo de Ajustamento de Conduta firmado entre o Carrefour , Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul e a Defensoria Pública da União Sobre o acordo do Carrefour em razão do assassinato de João Alberto Freitas
Sobre o Termo de Ajustamento de Conduta no valor de R$ 115 milhões, acordado com a o Carrefour Brasil, em razão do crime praticado por essa empresa, quando do espancamento, tortura e morte de João Alberto Freitas, homem negro, nas dependências de uma das lojas de Porto Alegre – Rio Grande do Sul, registramos:
1 – Assassinato sob tortura, foi isso o que aconteceu com o cidadão brasileiro e homem negro, João Alberto Freitas, no dia 19 de novembro de 2020.A filial do Carrefour no bairro Passo D’Areia em Porto Alegre – RS, foi cenário de gravíssima violação do direito humano à vida e à dignidade de um homem negro. Esta violência sustentada pelo racismo é recorrente e expressão de genocídio, apesar de prevista e reprovada pela Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) (promulgada pelo Decreto 40 de 1991), pela penalidade prevista na lei 9455 de 1997, além de expresso em nossa Constituição de 1988.
2 – De imediato ao acontecimento, esta Coalizão se colocou em repúdio ao bárbaro assassinato de João Alberto Freitas, através de Nota Pública e desde o primeiro momento rechaçando qualquer possibilidade de acordo e propondo boicote internacional à empresa. Aquela não foi a primeira vez em que a rede de supermercados Carrefour praticava situações de violência racial. Em 2009, seus seguranças espancaram Januário Alves de Santana na unidade de Osasco – SP, quando o “confundiu com um ladrão”, quando este abria a porta de seu próprio carro; Em 2018, na unidade de São Bernardo do Campo – SP, seguranças espancaram Luís Carlos Gomes porque ele teria aberto uma lata de cerveja no interior da loja. A situação de Beto não se tratou de exceção. violência racial é regra na rede de supermercados Carrefour e suas filiadas e deveria ser responsabilizada por isso.
3 – Esta Coalizão também se colocou através de NOTA PÚBLICA, crítica à criação do nomeado “Comitê Externo de Diversidade e Inclusão”, convocado pela empresa com o intuito demonstrar algum compromisso com a agenda racial, o que na verdade se caracterizou como uma estratégia de compliance empresarial, com a triste participação de organizações e lideranças negras a endossar a narrativa da empresa racista. A posição desta Coalizão foi a de representar junto ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do Rio Grande do Sul pedidos de responsabilização e representação do Carrefour e da empresa Vector Segurança Patrimonial.
4 – A Coalizão Negra por Direitos, através de organizações que compõem sua rede, participou do início das tratativas promovidas pelo MP de RS, no sentido de construir uma TAC sobre o tema, e nos colocamos contrários à qualquer tipo de ação que minasse a responsabilização judicial que deveria ser aplicada ao Carrefour, bem como a qualquer processo conciliatório sem a consulta aos familiares da vítima e a comunidade local.
5 – Defendemos que os processos deveriam acontecer sob o compromisso de 3 pilares fundamentais: A – Responsabilização civil e criminal da empresa Carrefour e não acordo de contenção; B – Diálogo com a família e indenização apropriada pelo homicídio praticado na empresa; C – Reparação ao território e à comunidade pela ação racista e violenta da empresa. Nenhum desses três itens foi respeitado no acordo que se concretizou, o que a nosso ver, compromete o resultado de todo processo e corrobora para as violências desencadeadas pelo racismo que tirou a vida de Beto e gera precedentes perversos para tantas outras violências promovidas por empresas e pelo Estado contra as pessoas negras.
6 – Um Termo de Ajustamento de Conduta não pode ser concretizado numa circunstância em o que está em evidência é um crime de tortura e flagrante assassinato, filmado e amplamente divulgado e assim noticiado em todos os meios de comunicação do país. Não há simples ajuste de conduta para casos de assassinatos por motivação racial somado o agravante de tortura.
7 – O papel histórico do movimento negro brasileiro é a de lutar pela efetivação dos direitos humanos da população negra e ao enfrentamento à violência decorrente do regime racista em que vivemos. Não nos representa e não fala em nosso nome organizações que conciliam e negociam com pessoas ou empresas que promovem crimes contra a humanidade, através do assassinato de pessoas negras. O referido acordo precifica, normaliza e naturaliza a violência contra as vidas negras, corroborado pelo Estado Brasileiro através de uma negociação e barganha sobre as nossas vidas e dignidade . Que fique registrado na história que os que fazem isso, agem em seu próprio nome e não em nome do todo do movimento negro brasileiro.
Diante do anteriormente exposto, reforçamos que a Coalizão Negra não tem anuência com iniciativas que precificam a vida de pessoas negras. Ao mesmo tempo, aproveitamos a ocasião para chamar a sociedade para acompanhar detalhadamente o desdobramento social deste termo de ajustamento de conduta, sobretudo quando temos ciência que instrumentos deste tipo raramente efetuam seu objetivo. A reparação do trauma social causado com a persistência da brutalidade e da desumanização dos corpos negros não se dará a partir do aporte financeiro em troca de nossas vidas. As entidades do movimento social negro que celebraram esse tipo de acordo, o fizeram, repetimos, em seu próprio nome, não representando a posição do movimento social negro de conjunto.
Por fim, destacamos que entendemos que a celebração desse TAC gera grave precedente para o enfrentamento da violência da qual os corpos negros são vítima. Não seremos signatários de acordos que autorizam nosso assassinato a partir de trocas financeiras.