A Coalizão Negra por Direitos, articulação nacional do Movimento Negro Brasileiro, composta por 293 organizações e coletivos de pessoas negras, apresenta neste documento suas contribuições ao 3o Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes (Genebra, 16-19 de abril de 2024) – Reparações, Desenvolvimento Sustentável e Justiça Econômica; Educação: Superando o Racismo Sistêmicos e os Danos Histórico; Cultura e Reconhecimento e a Segunda Década Internacional de Afrodescendentes: Expectativas e Desafios.
Preliminarmente, reiteramos a importância de incluir o tema da reparação nos debates sobre justiça racial e garantia de igualdade de direitos e oportunidades para a população afrodescendente, como temos destacado desde a criação desta Coalizão. Assim, considerando a realização do 3o Fórum e a renovação da década internacional dos afrodescendentes, proposta pelas Nações Unidas, é essencial fortalecer o diálogo público internacional sobre as sistêmicas, sistemáticas, crescentes e cotidianas violações de direitos sociais, econômicos, culturais, políticos e ambientais enfrentadas por afrodescendentes no Brasil e na diáspora africana.
Somos um país com a maior população afrodescendente das Américas e o maior contingente populacional negro fora do Continente Africano. No Brasil, oficialmente, 55,5% da população se autodeclara “preta” ou “parda”, portanto, afrodescendentes, – 113 milhões de pessoas. Esse fato é, no entanto, resultado de um crime que esse 3º Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes e a comunidade internacional precisa reconhecer como uma violação extrema: o tráfico transatlântico de escravos, o comércio de vidas humanas perpetrado por 4 longos séculos. Registros históricos consistentes informam que entre os séculos XVI e XIX, os portos brasileiros teriam recebido aproximadamente 3.600.000 escravos – ou quatro em cada dez africanos (mulheres, homens e crianças) traficados para o continente americano.
A escravidão de milhões de africanos e afrodescendentes no Brasil ao longo de quase quatro séculos representa o maior deslocamento forçado da era moderna. Os resquícios dessa história são visíveis atualmente, onde as vítimas da escravidão e seus descendentes foram responsáveis pela geração de riquezas das colônias, metrópoles e parcela da burguesia nacional e internacional, porém, nunca desfrutaram dos benefícios desse trabalho. Pelo contrário, após a abolição da escravidão, as práticas de racismo e eugenia interditaram objetivamente à uma inseacesso de afrobrasileiros à terra, ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia, às práticas de cultos religiosos de matriz africana, entre outros aspectos essenciais uma inserção social justa e digna. O pós-abolição no Brasil foi marcado, e continua sendo marcado, por criminalização, da existência de pessoas afrodescendentes nas cidades, nas periferias e nos quilombos quando lhes é negado o reconhecimento e formalização de seus direitos às terras ancestrais.
O Estado brasileiro, alinhado a tendências globais, expõe sua face de horror sem disfarces, atentando cotidianamente contra as vidas negras.. Uma parcela significativa da sociedade já não esconde mais sua máscara de hipocrisia, assumindo abertamente seu caráter racista, preconceituoso, misógino, transfóbico, homofóbico, lesbofóbico, intolerante e fascista. A política de morte — conhecida como necropolítica — e a disseminação do discurso de ódio, se alinham de maneira alarmante. Dados atuais, informam que a cada 10 homicídios no Brasil, 8 são contra jovens negros, conforme aponta a publicação anual do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2023.
Organizações negras brasileiras têm recorrido à comunidade internacional para denunciar o racismo como uma gravíssima violação de direitos, expondo a discriminação racial como base das desigualdades sociais no Brasil e para reafirmar que não somos o país da democracia racial. A sociedade civil negra foi atuante e decisiva na organização e negociações da 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas. A Declaração e o Plano de Ação de Durban são considerados documentos norteadores no combate do racismo e pela preservação das pessoas afrodescendentes.
O que mais nos preocupa neste conjunto de grandes violações de direitos humanos contra a afrodescendente no Brasil é o protagonismo do próprio Estado Brasileiro nas práticas que submetem essa comunidade ao terror e à ineficiência das políticas públicas que deveriam atender aos interesses, necessidades e direitos da população afrodescendente. No que diz respeito, às políticas de segurança pública o alvo principal tem sido essa parcela da população. A brutalidade policial tem característica incontestável de necropolítica em todos os estados brasileiros com população majoritariamente negra – Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, por exemplo. O atual governador de São Paulo, após ter sido denunciado a mecanismos internacionais de direitos humanos por sua responsabilidade na morte de 28 pessoas em 40 dias por forças policiais sob seu comando (Operação Verão), afirmou: “Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”.
Isso nos aponta uma firme certeza da impunidade perante a desumanização e extermínio do povo negro no país, não somente em relação a estrutura da justiça brasileira, mas também diante dos mecanismos internacionais de Direitos Humanos, sobretudo nos sistemas da Organização das Nações Unidas. Vale dizer que em meados de março de 2024 o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em um caso que envolvia outra operação policial realizada no Estado de São Paulo e que culminou na morte de 12 pessoas.
A sentença da Corte determina que o Brasil adote diversos protocolos para a redução da letalidade policial, além de que os familiares das vítimas sejam reparados, mas até o presente momento não houve qualquer ação por parte do poder público brasileiro. Vale dizer que casos como esses, de operações policiais que culminam na morte de dezenas de pessoas acontecem cotidianamente em todos os territórios brasileiros e jogam o país nos maiores índices de letalidade policial, tendo como maiores vítimas desta violência a população afrodescendente.
Como se não bastasse a gravidade da letalidade policial brasileira, em 2021, 2.601 mulheres afrodescendentes foram vítimas de homicídio no Brasil mostrando a faceta do sexismo enraizado em nosso território. As condições de vida da população afrodescendente são absolutamente agravadas pela negação do direito fundamental (e humano)à saúde, pelo pouco investimento em saúde pública e no tratamento de doenças com maior incidência na população negra, na exposição à fatores de risco de adoecimento e morte em razão das condições de vulnerabilidade social.
Quanto a isso, dados da Pandemia da Covid-19 demonstram que no Brasil, pessoas afrodescendentes foram as mais afetadas pela doença. Como é o caso da pesquisa realizada em conjunto pelas organizações Vital Strategies, Resolve to Save Lifes e Afro-CEBRAP a partir da análise de dados entre os de 2019 e 2020 que comparou os dados de expectativa de morte com os números contabilizados, e concluiu que houve uma taxa de aumento de excesso de mortalidade em razão da COVID-19: 57% maior das pessoas pretas e pardas em comparação às pessoas brancas; a população negra maior de 80 anos apresentou o dobro de mortes; e os dados seguem afirmando que os homens negros continuam sendo as maiores vítimas da falta do acesso á saude, pois a taxa de mortalidade dos homens negros foi 55% maior que em relação aos homens brancos.
No mesmo sentido, dados demonstram que a população negra brasileira é a maior vítima da insegurança alimentar. E aqui, é fundamental reafirmar que no Brasil, fome e pobreza têm cor e gênero. A experiência da fome é uma realidade para o nosso povo. De acordo com dados da Vigisan, a fome é um problema que atinge um quinto das famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas afrodescendentes no Brasil (20,6%). Esse percentual é duas vezes maior quando comparado ao de famílias comandadas por pessoas brancas (10,6%).
O racismo ambiental, que assume proporções catastróficas no Brasil, impacta a população afrodescendente profundamente, na medida que são a maioria entre os moradores de áreas em risco, e portanto os mais afetados pelas mudanças climáticas, que têm seus territórios tradicionais constantemente violentados, com ênfase no ataque permanente à população e aos territórios quilombolas. Vale dizer que mesmo as discussões e ações de mitigação e adaptação climática no Brasil passam longe de priorizar a população negra, mais exposta às mudanças climáticas.
Diante deste cenário perverso para afrodescendentes no Brasil, a Coalizão Negra por Direitos visa com este documento não apenas denunciar, mas também reivindicar um posicionamento do Estado brasileiro diante de inúmeras violações cometidas e apresentadas aqui.