O chamado Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, assinado em março de 2019 por Trump e Bolsonaro, previa o uso exclusivo do território para o governo norte-americano e removeria, sem consulta prévia, mais de 800 famílias quilombolas moradoras do local
Da Redação | Coalizão Negra Por Direitos
A mobilização organizada do Movimento Negro Brasileiro teve resultado vitorioso na última segunda-feira, 18 de outubro de 2021, com a notícia do veto da Comissão do Senado dos Estados Unidos sobre o uso de verbas do governo para retirar cerca de 800 famílias quilombolas do território de Alcântara, no Maranhão. O Estado Brasileiro receberia dos EUA até R$10 bilhões por ano para permitir que o território fosse acessado apenas por norte-americanos para testes aeroespaciais.
O veto agora faz parte do orçamento fiscal de 2022 do Departamento de Estado, que inclui verbas para ações dos EUA no exterior. “A Comissão está preocupada com os relatos de que o governo do Brasil planeja forçar a realocação de centenas de famílias quilombolas para expandir o Centro de Lançamento de Alcântara. Nenhum dos recursos providos por essa lei ou por leis anteriores podem estar disponíveis para forças de segurança do Brasil que se envolvam em reassentamentos forçados de comunidades indígenas ou quilombolas”, afirma o comitê no documento.
Entenda o caso #AlcantaraÉQuilombola
Em agosto de 2019, o deputado federal Eduardo Bolsonaro aprovou, com regime de urgência, na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara, em Brasília, o novo acordo que entregava a base aeroespacial de Alcântara-MA para o governo dos Estados Unidos.
O chamado Acordo de Salvaguardas Tecnológicas já havia sido assinado por Donald Trump e Jair Bolsonaro em março de 2019, e determinava que o governo brasileiro permitisse à defesa norte-americana o uso da base de Alcântara para lançamentos de foguetes e satélites.
A medida de Eduardo Bolsonaro teve o objetivo de pular todas as comissões da Câmara e ser aprovado diretamente pelo plenário, excluindo a população de participar de um debate público sobre o tema.
O Centro de Lançamento de Alcântara, construído em 1983, é cobiçado há muitos anos pela base militar dos EUA por sua localização estratégica próxima à Linha do Equador. Erguido em plena ditadura militar, ficou mundialmente conhecido com a propaganda de ser ponto de partida que pode reduzir em até 30% o combustível para um voo espacial. No entanto, muito antes disso, a região já era de origem quilombola e entregar a localização da base ao governo americano seria igual a despejar mais de 2 mil pessoas de seus territórios ancestrais, sem nenhuma consulta prévia ou política de reparação.
A cidade de Alcântara fica na região metropolitana de São Luís, capital do Maranhão, foi fundada em 1648 e, atualmente, possui cerca de 21 mil habitantes, com cerca de 70% deles se autodeclarando quilombolas.
Além disso, segundo o posicionamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), em 2019, a entrega da base de Alcântara seria também um grave golpe à soberania brasileira. “Isso nos coloca sob séria ameaça da segurança nacional, já que sabemos que os EUA querem fazer uso militar de Alcântara para seus fins políticos. Com o novo acordo, o Brasil será alvo de conflitos militares internacionais”.
Movimento Negro Brasileiro mobiliza forças e estimula ponto de virada nas negociações com o governo americano sobre a entrega da base de Alcântara
Após a movimentação bolsonarista no Congresso para acelerar a aprovação do acordo, o movimento negro, então, mobilizou forças no Brasil e também nos Estados Unidos para barrar essa negociação. A Coalizão Negra Por Direitos, representada por Sara Branco, do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdade, Juliana Góes, ativista de direitos humanos, e Douglas Belchior, da Uneafro Brasil, compareceram ao Congresso Black Caucus, em Washington, na capital estadunidense, para buscar apoio de congressistas do país frente aos ataques sofridos pela população negra do Brasil, promovidos pelo governo Bolsonaro. O encontro aconteceu em setembro de 2019, reunindo políticos afro-americanos e lideranças negras de todo o país.
Na ocasião, o congressista democrata Hank Johnson recebeu a comitiva da Coalizão Negra e demonstrou apoio à causa. Assista aos vídeos de Johnson exigindo uma consulta pública às comunidades quilombolas sobre a entrega da base de Alcântara e denunciando as negociações dos governos Trump e Bolsonaro para retirar direitos dessas famílias em troca de acordos comerciais.
Outra denúncia do caso fora das fronteiras do país foi registrada pela participação da Coalizão Negra na 42ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. A entrega da base de Alcântara foi abordada como parte do projeto de apagamento e genocídio da população negra que está em curso no Brasil e é agravado desde a chegada do atual governo.
No Brasil, as parlamentares Talíria Petrone (PSOL-RJ) e Áurea Carolina (PSOL-MG) lançaram, na época, a plataforma “Consulta Quilombola Já“, com o objetivo de pressionar o Congresso para que o povo quilombola de Alcântara fosse consultado sobre tudo que envolveria a entrega da base e, consequentemente, de seus territórios, para o domínio norte-americano.
A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal também publicou uma nota técnica reforçando a urgência da abertura de diálogo com as comunidades quilombolas da região sobre o acordo, como previsto nos termos da Convenção N° 169 da Organização Internacional do Trabalho.
A pressão popular e de outras esferas de representação, estimulada pelo movimento negro, teve efeitos e o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, recebeu representantes da CONAQ para reafirmar o compromisso do Congresso com a consulta pública, a não remoção de quilombolas de suas terras ancestrais e com a demarcação de terras. No entanto, em outubro de 2019, Maia somente reagenda a votação do acordo que passou pelo Congresso. O decreto de promulgação do tratado foi assinado por Bolsonaro em fevereiro de 2020.
Após ouvir as demandas da comitiva da Coalizão Negra no Black Caucus, Hank Jonhson, os então deputados Deb Haaland e Joaquin Castro e o senador Bernie Sanders enviaram uma carta ao Congresso dos EUA pedindo proteção às comunidades quilombolas contra retiradas forçadas do local e ataques racistas.
No texto, os parlamentares solicitaram que fosse incluída na proposta de orçamento da Defesa dos EUA de 2021 a proibição a qualquer tipo de cooperação que resulte na expulsão desses povos de suas terras.
O documento que especifica o veto está incluído na proposta de orçamento do ano fiscal de 2022 e precisa ainda ser aprovado pelo plenário dos Estados Unidos, mas já demonstra força e alta chance de passibilidade.
Para Douglas Belchior, essa é mais uma constatação da força política e de defesa de direitos do movimento negro.
“Fazemos articulações e incidências políticas internacionais desde sempre. Lideranças de movimentos negros brasileiros se relacionam com grupos dos Estados Unidos, no continente Africano, na América Central e Latina na luta diaspórica contra o racismo e o genocídio. Nós estamos dando continuidade a um processo que os nossos mais velhos iniciaram. Essa articulação junto aos movimentos negros e ao parlamento norte-americano está nesse contexto de construção diaspórica de uma resistência negra que enfrente o racismo em todo o planeta e o genocídio que afeta os povos negros nos países de herança colonial”.