Relatório especial: Formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e relatos de intolerância

A Coalizão Negra por Direitos (Black Coalition for Rights), articulação que reune mais de 250 organizações do movimento negro brasileiro, vêm a presença da Special Rapporteur on contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance, em resposta a edital aberto, apresentar contribuições acerca da situação do racismo ambiental no Brasil para serem consideradas pela Relatora no relatório sobre mudanças climáticas e justiça racial que será apresentado à Assembleia Geral da ONU.

No Brasil, as organizações da Coalizão Negra por Direitos têm travado embates para que haja reconhecimento por parte das autoridades do racismo ambiental que impera no país. Os trágicos impactos derivados das mudanças climáticas têm ampliado a precarização da vida da população negra brasileira, que já é vitimizada sistematicamente pela necropolítica aplicada a essa população no Brasil. Diversas tragédias relacionadas ao clima têm ocorrido por todo o país, afetando comunidades negras e pobres das cidades, mas também nos campos, florestas e comunidades quilombolas, localidades onde a maioria da população é composta por pessoas negras.

Esses impactos das mudanças climáticas são resultado da ausência de políticas públicas efetivas para manejar as mudanças que estão ocorrendo na natureza, de forma a proteger a população negra brasileira; o que se verifica é um agravamento da situação de pobreza e da precarização das condições de vida dessa população. Essas políticas deveriam ser de responsabilidade dos governos locais, estaduais e do Governo Federal.

Os grandes empreendimentos que são implantados em áreas habitadas por quilombolas e outras populações de maioria negra e indígena; os desastres em áreas urbanas com deslizamentos de terras e inundações; as situações de secas em várias regiões do país; os grandes depósitos de lixo em áreas urbanas e rurais habitadas por populações vulnerabilizadas (em sua maioria negras); a criminalização de populações que vivem do extrativismo e da pesca artesanal, são alguns dos exemplos do racismo ambiental que temos denunciado nos últimos anos.

A Humanidade está sendo colocada à frente com um dos maiores desafios do último século. O homem branco se colocou como centro nas relações com a Natureza e de produção, agora é hora de repensar essa postura e construir outras formas de nos relacionarmos com o mundo e seu meio ambiente. O debate sobre sustentabilidade e mudanças climáticas têm desconsiderado experiências – dolorosas – a que as populações racializadas são submetidas, em nome de um desenvolvimento que as exclui de quaisquer benefícios e mecanismos de proteção, deixando-as expostas às graves consequências da degradação socioambiental. Não é a chuva que mata a população mais pobre, é a falta de investimento em políticas públicas adequadas, que se intersecciona com as consequências de um modelo de desenvolvimento predatório, ultraneoliberal, segregador e excludente.

As Conferências das Partes (COP), por exemplo, representam uma importante arena de discussões sobre o que os países pretendem fazer para frear o aquecimento do Planeta Terra, mas apenas na última COP26 foi que tivemos um número expressivo de ambientalistas negros vindos do Brasil. Há pouco espaço de participação e deliberação para a sociedade civil organizada. Como pretendem lidar com a questão climática sem incorporar aos processos aqueles e aquelas que ainda guardam florestas, protegem a biodiversidade, e preservam as práticas tradicionais de relações com a natureza, mesmo sendo os que mais sofrem diretamente os efeitos das mudanças do clima?

Viemos perante à Relatora Especial apresentar algumas situações concretas de preocupação da sociedade civil brasileira em relação à dimensão racial dos impactos das mudanças climáticas no Brasil. Ocorrências que caracterizam um cenário sistêmico de mazelas sociais para o enfrentamento do racismo ambiental no país.

Comunidades quilombolas do Sapê do Norte
No interior dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, no estado do Espírito Santo, encontra-se o território quilombola conhecido como Sapê do Norte. O local concentra comunidades que se definem enquanto remanescentes de quilombo, sendo 29 delas certificadas pela Fundação Cultural Palmares¹.

Desde a década de 60, a população majoritariamente negra que já residia nesse território e lutava pelo reconhecimento de sua territorialidade e posse da terra passou a conviver com investidas do monocultivo de eucalipto e cana-deaçúcar. Inicialmente, o interesse do grande capital pelas terras – antes de uso e ocupação quilombola – foi intensificado pela construção da BR-101 (inaugurada em 1957). Já no decorrer das décadas de 70 e 80, as investidas do agronegócio ganham força com o Proálcool² e, em meados dos anos 2000, o território se tornou palco de conflitos com a instalação de um gasoduto (Cacimba-Catu) pela Petrobrás.

Além de desrespeitar o histórico de posse e uso da terra, esse processo foi responsável pelo desmatamento em larga escala, pelo ressecamento de córregos e aterramento de nascentes, pela mortandade de animais e por um elevado despejo de agrotóxicos na água e no solo. Como resultado, a população quilombola que resistiu ao violento processo de expropriação de terras e conseguiu permanecer no Sapê do Norte passou a conviver com uma drástica redução da biodiversidade.

Por fim, interessa relatar à ONU que a população negra remanescente de quilombo que permanece em luta nesse território passou a vivenciar mais uma camada de violação de direitos após o rompimento da Barragem de Fundão, operada pela Samarco em Mariana/MG, em 5 de novembro de 2015. Estudos produzidos no âmbito da Força-Tarefa Rio Doce do Ministério Público Federal³ apontam que, desde a chegada da lama de rejeitos na região costeira do Espírito Santo, essa população convive com a presença de Elementos Potencialmente Tóxicos na água e no solo, o que coloca em risco a continuidade de seus modos de viver e de sua transmissão para as próximas gerações.

Desse momento em diante, as denúncias sobre processos de desertificação, estiagem e ressecamento de córregos e nascentes – desdobramentos do intenso monocultivo no entorno – somaram-se a relatos de danos e perdas materiais e imateriais, incluída a insegurança no acesso à água potável suficiente, segura e aceitável para usos pessoais e domésticos, mesmo quando há poços e cacimbas. Em adição, é necessário pontuar que a população do Sapê do Norte segue na luta para ser reconhecida como atingida pelo desastre da Samarco e garantir sua devida reparação, fato que não ocorreu mesmo após mais de 6 anos do desastre.

A situação descrita acima é responsável pelo agravamento de vulnerabilidade existente no território, além de pesar negativamente sobre as capacidades de adaptação e resiliência das populações quilombolas em face do atual contexto de emergência climática.

Deslizamento em Petrópolis – Inundação Minas Gerais e Bahia

Apenas em 2022, o Brasil já contabilizou 500 mortes pelos impactos causados pelas fortes chuvas. Os alagamentos e deslizamentos de terras em encostas, no início de 2022 na região Sudeste – Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro – e no sudeste da Bahia, escancaram a política urbana que coloca pessoas negras em condições de subalternidade e, em risco, porque as regiões mais seguras não foram feitas para elas habitarem. por que há um maior número de casos de enchentes, deslizamentos de terras e transbordamento de rios em áreas periféricas da Grande São Paulo, como nas cidades de Embu das Artes, Francisco Morato e Franco da Rocha, e não em bairros como Perdizes, na capital paulista?

A ocupação de áreas íngremes não é sinônimo de desastres. Em cidades como a capital paulista, os morros foram ocupados pelas elites. A fragilidade das condições topográficas foram mitigadas por investimentos públicos e privados em infraestrutura. A carência de infraestrutura urbana para a permanência segura de moradias em áreas de morro é um produto da lógica que transforma a necessidade humana básica de morar em mercadoria. Nesse sentido, essas situações de risco não surgem apenas por uma presunçosa falta de planejamento, mas também como resultado da política habitacional destinada para essa população negra e periférica.

Um levantamento realizado pela Globo News, por exemplo, destacou que o Governo de São Paulo não utilizou verba aprovada para combater enchentes por 11 anos seguidos, entre 2001 e 2011.

Inundações e deslizamentos de terras no Nordeste, especialmente em Pernambuco
O alto índice de precipitação na região Nordeste no final de maio de 2022 foi considerado um evento atípico para o período chuvoso devido ao encontro dos Distúrbios Ondulatórios de Leste e uma massa de ar de frente fria vinda do Sul do país. Todavia, ressalta-se que são estes tipos de eventos climáticos esperados pelo efeito das mudanças climáticas anunciados pelos pesquisadores do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC).

A certeza dos períodos de chuva é a morte de pessoas negras e periféricas. Essa certeza se dá porque a falta de planejamento urbano de longo prazo nas cidades tem aprofundado as desigualdades sociais e ambientais, principalmente, para as populações de baixa renda, negras e indígenas neste país. Recife, por exemplo, tem um histórico de tragédias relacionadas aos altos índices pluviométricos: 1975, 1986,1990 e 2010 (com enchentes em 41 municípios da zona da Mata Sul).

Sendo assim, tendo suas condições de vida vulnerabilizadas em um cenário de mudanças climáticas, elas são as primeiras a morrer. Na região metropolitana de Recife, no estado de Pernambuco, a população se uniu para buscar os seus familiares entre os escombros dos deslizamentos. As perdas de vida já chegam a mais de 120 pessoas. No estado de Alagoas, foram confirmadas três mortes e mais de 7.500 pessoas afetadas pelas fortes chuvas. Em Sergipe, a Defesa Civil foi acionada pela ocorrência de desabamentos, pelo risco de desabamentos em outras áreas e por vários pontos de alagamentos na capital Aracaju. Na Paraíba, os moradores tiveram que trafegar utilizando canoas porque as ruas do centro da região metropolitana de João Pessoa alagaram.

É o dano irreversível em muitas famílias pela perda das únicas conquistas materiais e a segurança de um teto para habitar. A população racializada mais empobrecida que vive nas grandes cidades é empurrada para as regiões de maior fragilidade ambiental, portanto, de menor interesse econômico para o mercado imobiliário. Sem políticas habitacionais, sem infraestrutura básica, sem saneamento básico, sem planos de adaptação e de prevenção de desastres.

Essa estrutura político-social que empurra a população racializada para condições de vida de grande vulnerabilidade socioambiental, ao mesmo tempo, que não recebem políticas públicas adequadas para o enfrentamento da precária condição de vida são as formas que o racismo ambiental se estrutura nas grandes cidades brasileiras.

Ameaça a ambientalistas que defendem seus territórios

O Brasil é o quarto país do mundo que mais mata ambientalistas, de acordo com relatório da ONG Global Witness. Os povos tradicionais, comunidades quilombolas, ribeirinhos e indígenas sofrem constante pressão de diversas atividades econômicas em seus territórios, sendo ameaçados ou mortos cruelmente.

Em janeiro de 2022, uma família de ambientalistas na área rural de São Félix do Xingu, no Pará, foram encontrados mortos. José Gomes, Marcia Nunes Lisboa e Joene – pai, mãe e filha, respectivamente, tinham projeto de soltura de quelônios no Rio Xingu. José Gomes, conhecido como Zé do Lago, e Márcia moravam na localidade há mais de 20 anos e eram conhecidos devido ao projeto de preservação de tartarugas e tracajás (quelônios) e outras atividades de proteção ambiental na região. O caso foi investigado e tem sido relatado como um assassinato encomendado assim como o de Chico Mendes, em 1988 e o casal de seringueiros Maria e Zé Claudio, em 2011. Todos esses casos se concentraram no Pará, em regiões de conflitos ambientais acentuados, e todas as vítimas eram negras que lutavam por um modo de vida equilibrado com a conservação da floresta.

Em Salvador, na Bahia, a marisqueira Eliete Paraguassu, uma mulher negra, quilombola e liderança comunitária de Ilha de Maré tem sido constantemente ameaçada de morte por defender melhores condições de vida e saúde para o povo quilombola de Ilha de Maré, e por denunciar grandes empreendimentos que se instalam e contaminam as águas. Eliete atua desde a década de 1990 denunciando o racismo ambiental e pelo direito de seu povo de permanecer no território, que vem sendo pressionado e impactado por por indústrias petroquímicas situadas no entorno, como o Complexo Industrial de Aratu (CIA), o Complexo Petroquímico de Camaçari (Copec), e pelo Porto de AratuCandeias, onde circula 60% da carga marítima do Estado da Bahia. “A população de Ilha da Maré é o sacrifício do desenvolvimento do Estado. A gente está falando de um povo que tem seus corpos como zona de sacrifício, mas também tem seus corpos como zona de amortecimento desse empreendimentos”, afirmou Eliete Paraguassu em entrevista ao Jornal Brasil de Fato.

Ampliação da Base Espacial de Alcântara e a ameaça a territórios quilombolas

O Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, foi construído na década de 1980 sobre o maior território quilombola do Brasil, removendo compulsoriamente 312 famílias. Localizadas na Amazônia Maranhense, as famílias realocadas faziam parte de 32 comunidades quilombolas, das quase 200 que existem no município. Alcântara é o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do país – são mais de 3,3 mil famílias, ou cerca de 22 mil pessoas.

Durante os últimos 40 anos, foram três tentativas de lançamentos do Veículo Lançador de Satélites (VLS). Todas falharam – a última, em agosto de 2003, matou 21 pessoas em uma explosão ainda em solo. Três tentativas fracassadas, bilhões de reais investidos e o Brasil não está entre os países que detém a tecnologia do veículo lançador.

Em abril de 2021, o governo federal de extrema-direita de Jair Bolsonaro apresentou os nomes de quatro empresas, selecionadas em um processo licitatório, para utilizar comercialmente a base. São três estadunidenses e uma canadense, e previa a ampliação da base em mais 12 mil hectares. Isso significaria o deslocamento de outras comunidades quilombolas. Por outro lado, o processo de titulação dos territórios não avança há 13 anos.

Em janeiro de 2022, após 20 anos de tramitação no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (OEA), o caso foi enviado a julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações de direitos humanos contra as comunidades quilombolas de Alcântara.

● A violação à liberdade de culto nos territórios sagrados às religiões de matrizes africana, afrobrasileira e afroindígena

A preservação do meio ambiente está intrinsecamente ligada às práticas ancestrais, aos fundamentos e à continuidade das religiões de matrizes africana, afrobrasileira e afroindígenas. Os orixás e as entidades ligadas aos cultos do povo negro no Brasil são representados também pelos rios, pelo mar, pelas matas e florestas, de modo que algumas dessas práticas, desses ritos, acontecem nesses locais, que são considerados sagrados para essa população.

O Brasil traz um histórico de violências e violações aos praticantes dessas religiões, e esses números têm crescido nos últimos anos, decorrência da ascensão do fundamentalismo religioso, dos discursos de ódio e do racismo estrutural, que nesse caso é demarcado como racismo religioso. Os governos têm, de acordo com o Estatuto de Igualdade Racial – importante marco legal federal conquistado pela população negra – a responsabilidade pela salvaguarda e pela proteção aos locais de culto e prática ancestral dessas religiões, mas além da inércia na atuação frente a essas violências, os governos têm sido agente dessas violações também.

Em Salvador, na Bahia, uma obra da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) e da Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A (Embasa), autorizada pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) prevê a instalação de uma estação de esgoto na Lagoa do Abaeté, uma Área de Proteção Ambiental (APA) com valor inestimável para as religiões de matrizes africana, afrobrasileira e afroindígena. Recentemente, o Ministério Público da Bahia recomendou a suspensão das obras para seja feita uma consulta prévia às comunidades tradicionais de terreiro.

Contatos para referência e contribuições adicionais:
Mariana Belmont – [email protected]
Sheila de Carvalho – [email protected]